Resenha Crítica: "A Casa e o universo", de Bachelard




Resenha Crítica
Autor da Resenha: 
Mara Falcão Palhares Barbosa
Referência do Texto:
BACHELARD, Gaston, A casa e o universo, In: Os Pensadores, Poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
Palavras-chaves (2):
Memória; espaço habitado; arquivo; casa.
Desenvolvimento do Texto:


As imagens poéticas na construção da casa

Filosofia e poesia se encontram e se misturam nessa obra que é um deleite para o sonhador – não somente o de casas.

Gaston Bachelard, em seu livro “A Poética do Espaço” (1978), trata da espiritualidade da obra de arte. Delineia os caminhos que o artista percorre para chegar à materialização da criação artística. Mostra-nos, ao longo de seus dez capítulos, como da filosofia da poesia, surgem imagens poéticas. E são essas imagens, repercutidas no poeta, vindas da alma e do coração, influenciando seu modo de ser, que acabam desvelando o ser humano, seus medos e segredos.

Para o autor, alma, espírito e devaneio aliam-se na construção de imagens poéticas; daí a subjetividade destas. São elas que sugerem uma expressão criadora do próprio ser.

O olhar de Bachelard, acrescido de outros olhares de autores, estende-se por todo o livro, trazendo-nos a imagem poética. Trata, nessa obra, a imaginação e o devaneio como um potencial do ser humano. Aponta-nos, ainda, com que intimidade eles nos afetam. O filósofo quer nos mostrar que uma casa pode ser analisada não somente em seu espaço geométrico, em suas constituições físicas, mas também por seus valores oníricos, através de imagens poéticas que constituem o espaço poético.

Na introdução de sua Poética do Espaço, o autor nos diz que, se um filósofo “quiser estudar os problemas estudados pela imaginação poética, (...) deve esquecer seu saber, romper com todos hábitos de pesquisas filosóficas”. E acrescenta: “o passado de cultura não conta”. Sendo assim, não adiantaria todo um trabalho na tentativa de “interligar e construir pensamentos”. Observa, ainda, que a imagem poética “não está submetida a um impulso” e também “não é um eco do passado”; ela “tem um ser próprio, um dinamismo próprio”. (p.183)

Capítulo II

A casa e o universo


O autor inicia o segundo capítulo com a proposta de “fazer uma leitura lenta de algumas casas e de alguns quartos “escritos” por grandes escritores”. (p.222)

Baudelaire é o primeiro escritor a ser chamado. Para este, o valor da intimidade é sentido quando uma casa é atacada pelo inverno – que trará mais poesia à habitação, e esta tornará a fria estação ainda mais poética. A imagem da cabana branca, no fundo de um pequeno vale, sugere, segundo Bachelard, devaneios de repouso. Nesse “paraíso artificial” o “sonhador pede um inverno rude”. Pois assim seu ninho será mais quente, mais terno, mais amado. “Tudo se ativa quando as contradições se acumulam”. (p.223)

Somos convidados a entrar nesse centro de devaneio. E nele, Bachelard indica que coloquemos os nossos traços pessoais e seres do nosso passado.

Mostra-nos uma choupana perdida nos confins de um bosque no inverno que, para Baudelaire, seus efeitos seriam “extratos da felicidade do inverno”. (p.223)

Mas essa casa, como tantas outras encontradas na literatura, cercada por uma “atmosfera de entorpecimento”, não luta. É a estação mais fria – com a neve que vai aniquilar o mundo exterior. Nesse sentido, casa e universo se contrapõem; e este último é suprimido para o ser abrigado. É nessa dialética da casa e do universo que Bachelard nos chama a perceber a luta manifesta na resistência contra as forças da natureza. Porém, o sonhador da casa, diz o autor, sabe de tudo que a neve provoca lá fora e , ali, abrigado “experimenta um aumento de intensidade dos valores de intimidade” (p.224)

É o inverno, a mais velha das estações, que “põe tempo nas lembranças. Remete-nos a um passado distante”. (p.224)

Esse efeito do inverno, de sua hostilidade, de acordo com o autor, é bem evocado por Bachelin, com histórias vividas nas “casas cercadas de neve e de vento frio”, “histórias que meditam forças e signos”. (p.224)

Na sequência, traz-nos um exemplo encontrado em Rilke. Para este autor, seria na cidade, sobretudo, a tempestade mais ofensiva. Já no campo, menos hostil. Visão que, para Bachelard, é um paradoxo de comicidade. Traduz esse olhar de Rilke como “um “negativo” da casa, uma inversão da função de habitar” (p.225). Esse abrigado quer estar do lado de fora, apenas por uma pesquisa de devaneio. Não participa da resistência, pois acredita que a natureza, mesmo com toda sua fúria, saberá poupar a morada do homem.

Contrapondo-se a essa última casa, Bachelard descreve-nos a de Malicroix. Aquela que, corajosamente, impõe-se como um ser diante da tempestade. E, personificada, “vai-se tornando um verdadeiro ser de humanidade pura” (p.226). Apenas se defende das tempestades, sem ter jamais a responsabilidade de atacar. Chamada de “La Redousse”, a casa luta bravamente e, como uma loba, defende seu abrigado. Dessa forma, essa habitação, “de refúgio, fez-se reduto”, dando exemplo de coragem e resistência àquele que deve aprender a vencer o medo.

Para Gaston, esses “valores de proteção e resistência da casa são transformados em valores humanos” (p.227). É a casa que nos ajuda a dizer: “serei um habitante do mundo, apesar do mundo” (p.227).

Na rivalidade, entre casa e universo, homem e casa se unem em comunhão. A casa se transforma em valores humanos; a casa educa, a casa acolhe, a casa encoraja. Ela protege e abriga contra tempestades do céu. É ela “um instrumento para afrontarmos o cosmos”.

No romance de Henri Bosco, Malicroix, o psicólogo da imaginação, percebe que o cosmos forma o homem, remodela o homem. Ainda nesse livro, a despeito de ser a casa, em sua realidade primeira, visível e tangível, é possível ouvir “o passo de ferro do sonho”.

Bachelard propõe, nesse complexo de realidade e sonho, que examinemos “as casas do passado, as casas em que vamos reencontrar, em nossos devaneios, a intimidade do passado” (p.228)

Fala sobre as casas desenhadas, que também não deixam um sonhador indiferente por muito tempo. Ele próprio gostaria de morar em uma delas. E através da simplicidade da casa rústica, de madeira entalhada, seu devaneio habitava a casa essencial. Qual não foi sua surpresa encontrar traços desses devaneios ingênuos em suas leituras!

O filósofo continua, agora com as casas de estampas. Traz a “casa pobre” – dos poemas de André Lafon – que acolhe o leitor como a um hóspede. E se deleita com os desenhos de suas leituras. Quer morar numa dessas “estampas literárias”, numa dessas casas simples que despertam sua imaginação literária.

A casa de Georges Spyridaki é mencionada. É a casa em que suas paredes crescem, estendem-se segundo o desejo do escritor. É mais que geométrica. Ela respira. É célula. E também é mundo.

A habitação de René Cazalles é aquela onde nascem as tempestades, em que o sossego é extenuante. “Semelhante à do vento do mar, palpitante com suas gaivotas” (p.230). Em seus textos, “o universo vem habitar sua casa” (p.231).

Essas casas literárias de Cazalhes e de Spyridaki são “moradas de imensidão”.

Em Cazalles, a casa ganha a dialética imaginária. É possível respirar-se a lava, tornar-se o vento firme como uma viga... Ao traduzir essas características, Bachelard diz-se, como filósofo, preciso demais e confere ao poeta mais sugestividade.

Ainda em Cazalles, Bachelard diz que os espaços amados se libertam, transportam-se para outros planos diferentes dos sonhos e das lembranças.

Em oposição ao homem positivo, Gaton fala-nos do “sonhador de casas”, esse que vê casas em todo lugar. Ilustra com versos de Jean Laroche: “Essa peônia é uma casa vaga”, ou ainda “Todo cálice é morada” (p.233).

Nostálgico, traz as casas perdidas que para sempre vivem em nós. Então questiona: “Por que nos saciamos tão rápido com a felicidade de habitar a morada? Por que não fizemos durar as horar passageiras?” (p.233). E trazendo as palavras de Richaud, conclui: “Se mantivermos o sonho na memória, se superarmos a coleção das lembranças precisas, a casa perdida na noite dos tempos sai da escuridão, parte por parte” (p.234).

Sobre as lembranças de Willian Goyen, reflete: “O terreno em que o acaso semeou a planta humana não era nada. E desse fundo do nada crescem os valores humanos” (p.234).

Mais adiante pondera: “Se a casa é um valor vivo, é preciso que ela integre uma irrealidade. E preciso que todos os valores tremam” (p.235).

Na página seguinte, o autor traz a oposição entre a casa natal e casa sonhada – esta que pode ser um simples sonho do proprietário. A casa sonhada é a que vem satisfazer o orgulho e a razão. Quando terminada, traria pensamentos e não mais sonhos. Então, o sonhador de moradas deve estar alojado por toda parte, no entanto, sem se prender a lugar algum.

O autor fala-nos das casas solitárias encontradas no campo por Henry David Thoreau que vê nelas somente vantagens, nenhum inconveniente, o qual ainda clama: “Só peço olhos que vejam o que vocês possuem”(p.237).

Quando Bachelard traz a fala de George Sand –“ podem classificar os homens segundo queiram viver numa choupana ou num palácio”- reflete: “quem tem um palácio sonha com uma choupana, quem tem uma choupana sonha com um palácio”(p.238). Segundo Bachelard, essas “duas realidades extremas da choupana e do castelo(...) enquadram nossas necessidades de retiro e de expansão, de simplicidade e de magnificência”(p.239).

Mais adiante, o filósofo fala-nos dos grandes sonhadores que aprenderam a intimidade do mundo, meditando a casa.

Chama-nos a uma volta à realidade para os devaneios de governar a casa. Mas, como atribuir a esses afazeres domésticos uma atividade criadora? Segundo o autor, a nossa consciência é que rejuvenesce tudo e é maravilhoso podermos ser o autor do ato mecânico. As tarefas diárias da casa, trabalhadas por nossas mãos, aumentam a dignidade dos objetos assim acariciados. “A arrumadeira desperta os móveis adormecidos”(p.241). Esse encantamento é que reconstrói o mundo do sonhador.

No pensamento de Bachelard, a casa, mais ainda que a paisagem, é um estado de alma daqueles que a desenham e a retratam. O filósofo fala-nos da espontaneidade do desenho da casa feito por uma criança. As marcas da felicidade ou infelicidade da criança estarão estampadas nos traços da casa.

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